Uma Coluna para chamar de minha, com Vivi Lima

Dear Friends,

Quero compartilhar com vocês uma regalia que a vida me reservou e que me é muito cara: possuo quatro bibliotecas dentro de casa. Sim, porque uma biblioteca pessoal é para os fracos. Eu possuo uma biblioteca do lar composta de quatro acervos pessoais. O de mamãe, o de papai, o de minha irmã e o meu. Pela posse prolongada que faço da coleção de livros de minha parentela, posso me considerar dona do acervo. Sempre há quem se rebele e me tasque um “esse livro é meu”. Mas a é verdade é que se trata de um livro adquirido por usucapião e não se fala mais nisso.

Brincadeiras à parte, as bibliotecas particulares de cada um sempre foram dadas ao uso familiar. Nunca foi preciso demarcar território. Ato impensável em um lar em que a leitura sempre foi a dona da vez. Ato também pra lá de vão, uma vez que as próprias predileções literárias encarregam-se de estabelecer as divisões. Por isso, sinto que, nessa conta, eu sempre saio ganhando. Eu leio de tudo, ora pois!

Eu e minha irmã conjugamos nossas bibliotecas. Ela vem com seus livros de culinária, moda, psicologia e condutas de vida. E no mesmo abrigo, eu ponho os meus livros de ficção, os meus poetas, os meus escritores que romanceiam e os que ensinam a romancear. Estão todos lá formando o remendo harmônico do nosso gosto pacífico. Pode parecer que não, mas Sônia Hirsch, Gloria Khalil e Nina Garcia convivem bem com Francine Prose, Italo Calvino e Diana Gabaldon,só para citar alguns.

Minha irmã tem o hábito engraçado de comprar livros de ficção. Ela quase nunca os lê. Ela não assume que os compra para mim. Mesmo sem as honrarias concedidas, eu me “autoacho” dona deles, de qualquer modo. Afinal, quem os lê sou eu. Ela se gaba de que os romances literários da minha vida são frutos de sua aquisição direta e indireta. É a mais pura verdade e eu abuso de seus poderes talismânicos antes de quebrar o cofrinho.

Quando o assunto é formação acadêmica, a inteligência coletiva dita a união legítima. Logo, dá-lhe livros de educação, educação e novas tecnologias, educação a distância, pedagogia empresarial, gestão do conhecimento, criatividade...e muitos, mas muitos dicionários metodológicos, de línguas, de dificuldades da língua portuguesa. Mas o nosso xodó mesmo é o Dicionário Analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Lindo! Com ele, não tem pra mais ninguém. Para o fim de cumprir o regime ditatorial da sobrevivência, é bom rechear a estante com os Grandes Clássicos da Literatura de Concurso.

Eu também sou a única que leio a biblioteca de meu pai. Além dele, claro. Meu pai gosta de assuntos de deixar o cabelo em pé. Acho que as informações mais fascinantes e instigantes do mundo fazem morada na biblioteca de meu pai. Física quântica, matemática, simbologias gregas e hebraicas, dicionários bíblicos, espiritualidade dominam aquele pedaço. Eu me sinto pequena diante dessa seleção de livros, mas também muito feliz. E insatisfeita porque, não raro, é difícil compreendê-los. No entanto, quanto mais apanho deles, mais eu gosto.  Por isso decidi que a minha coleção de livros de filosofia se acomoda mais confortável em colo paternal. Na minha cabeça, vejam só, a filosofia intersubjetiva de Martin Buber combina numa boa com a neurociência de Miguel Nicolelis. Mas isso é conversa para depois. Para completar estou em débito com meu pai, ele encomendou-me a leitura de uma das suas mais novas aquisições e eu não pude fazê-lo ainda. A vida imortal de Henrietta Lacks. Alguém já o leu? Esse tá minha lista de contas a pagar.

Da minha saudosa mãe, doou-se muita coisa. Alguns poucos livros, de tão bons, ficaram. O meu amor pela poesia vem dela. Era ela quem comprava os cancioneiros e livros demodés como jograis e umas tantas peças de teatro desconhecidas. Coisas de mamãe. Ela gostava de tudo que tivesse apelo popular. Catulo da Paixão Cearense! Nome de pura poesia e também nome das coisas pelas quais minha mãe se interessava. E que, por isso, hoje me dizem muito respeito. Luar do sertão me diz total respeito.

“Se a lua nasce por delas da verde mata
Mais parece um sol de prata prateando a solidão
A gente pega na viola que ponteia
E a canção é a lua cheia
A nos nascer do coração
Se Deus me ouvisse
Com amor e caridade
Me faria essa vontade
O ideal do coração:
Era que a morte
A descontar me surpreendesse
E eu morresse numa noite
De luar do meu sertão”

Lindo, não? Porém, a dimensão dessa beleza só fui reconhecer depois que minha mãe faleceu. Hoje, quem anda por aí lendo Catulo? A título de estímulo, segue o barulhinho bom de “Ontem ao luar”, de Catulo da Paixão Cearense interpretado na voz de Marisa Monte.



Às vezes, me pego trilhando alguns canais de leitura subterrâneos, fora do establishment. E quando isso acontece, eu brindo à minha mãe. Sem copo e sem bebida. Apenas com o livro em mãos a saudação se completa. “Leio por ti, mãezinha”.  Atribuo a ela um achado recente e valiosíssimo. Vou-lhes contar: não fosse o legado de minha mãe que fixou em meu DNA o gostar da leitura de peças de teatro, eu não teria conhecido a dramaturga Susan Glaspell. Desconhecida do grande público, mas tão magnífica! Tão visceral. E, gracias a la vida, agora faz parte do meu acervo mais íntimo. Escrita em uma de suas peças intitulada “ O Limiar” há uma fala pela qual sou apaixonada. Cito-a aqui como forma de sintetizar a minha atitude diante dos livros que li e que um dia lerei.   

“Eu quero – me arriscar! Talvez essa seja a única maneira de salvar – O que está aí! Nós não sabemos. Arriscar então. De tudo que flui dentro de nós, deixar que venha à tona! Tudo que nunca pensamos em usar para criar um momento – deixar fluir em direção ao que poderia ser! É nossa chance – nossa chance de arcar com o que está aí”. (Susan Glaspell, O Limiar)

Enfim, o trecho acima não fala de literatura. Mesmo assim, uso a citação nesse contexto porque me cai bem diante de uma cultura literária em que tudo parece ser divisão. De gênero, de estilo, de língua, de padrão, de bandeira.  Mas, para mim está tudo conectado, junto e misturado. É por isso que eu me jogo sem redes e sem proteção nas páginas dos livros respeitando a “personalidade” que cada um deles apresenta. Não quer dizer que os aprovo, apenas arrisco-me a conhecê-los no tempo em que durar a nossa companhia.
Até a próxima!
 
PS: Não sei se a distribuição do livro “O teatro de Susan Glaspell” ainda é gratuita. Mas, há dois anos eu adquiri o meu exemplar seguindo a informação abaixo.

“Para obter gratuitamente uma cópia deste livro, escreva para o endereço luciavs@terra.com.br e solicite sua cópia”.

Trata-se do email da tradutora do livro publicado aqui pela Embaixada dos Estados Unidos da América: Lucia V. Sander. Tentem o mesmo. Boa sorte!

9 comentários

  1. Adoreeeeeeeei, Le!!!

    Beijo,
    www.estanteseletiva.com

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  2. Oi Leninha! Amei o post. Parabéns a Vivi pela bela escrita, muito bonita a ligação de sua família com os livros. E q riqueza: 4 bibliotecas!!!rsrsrs...isso é para os fortes mesmo!!! Não conhecia Catulo da Paixão Cearense,linda a poesia!! Grande abraço!!!

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    1. Obrigada, Cali! Catulo da Paixão Cearense é garantia de leitura de qualidade. Vale conhecer a obra desse grande fazedor de versos. Fica a recomendação. Bjs!

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  3. Que lindo, Vivi. Adorei tomar parte dessas suas memórias literárias afetivas. Tão bom quando todo mundo da família partilha da mesma paixão, ainda que de maneiras diferentes...

    Esse livro que seu pai te recomendou me interessou, mas acabei deixando de fora da minha lista. Agora que ando mais chegada em leituras densas, talvez seja a hora de colocá-lo de volta.

    Adorei. Sempre bom matar a saudade dos seus textos aqui no blog da Leninha.

    beijos, meninas!

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    1. Cupcake, queridaça, é sempre muito bom vê-la por aqui. No quesito literário, minha família nunca me faltou. Nas bandas de cá, falta do que ler não é desculpa para não ler.

      Eu também sou de fases. Ora quero algo leve, algo exageradamente escapista; ora busco densidade. É bom poder alternar entre essas escolhas. Até hoje, isso tem me feito bem.

      Desde o ano passado, tenho um blog feito na calada. http://1hdetudo.blogspot.com.br/ Não o tenho divulgado porque é um lugar em que registros ideias simplórias, concebidas sem filtro. Em busca de eliminar a sobrecarga blogueira, não invisto em nada muito elaborado que exija de minha parte planejamento e maior tempo de execução. Será um prazer recebê-la em minha humilde cabaninha virtual.;D

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    2. Olha, disso não posso reclamar também, porque quem me iniciou no mundo dos livros foi minha mãe, desde antes de eu entrar na escola. Sempre estivemos às voltas com os livros em casa (embora não tivesse biblioteca, minha mãe sempre emprestava livros das amigas e eu da biblioteca da escola). Então, o mundo das letras sempre foi o nosso mundo. Isso me salvou.

      E o bom é poder ser e ler o que quiser. Detesto me sentir presa e gosto de variar e me aventurar tb. Tou contigo, Vivi.

      E hey! Agora fiquei feliz. Vou lá fuçar sua cabaninha. Cabana e cafofo tem tudo a ver, não acha?

      Beijão, querida!

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  4. Vivi sempre brindando o blog com um belo texto.
    Você é uma afortunada, com uma família linda e culta, quem me dera.
    Nunca tive incentivo para ler, minha família é totalmente não adepta à leitura.
    Sou uma ovelha negra na família, por gostar tanto de ler.

    Todas as dores: De cabeça, no corpo, gripe, resfriado, meu pai culpa meus livros, acredita?
    Tudo é por causa da poeira, da posição de ler, de forçar as vistas... Ainda bem que tenho um marido que me ama e me presenteia com uma vida recheada de livros, e tento passar minha riqueza para minha filha, que apesar de um estilo diferente de leitura, lê também.

    Sinta-se agraciada pela vida amiga!

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    1. Leninha, essa coluna tem me feito um grande bem. Numa fase, em que mal posso dedicar o melhor do meu tempo à escrita, essa sessão tem me resgatado do ócio nada criativo em que tenho vivido. Obrigada!

      Apesar da torcida contra da parte de seu pai, você manteve-se firme em sua condição de leitura. Mérito seu. Leitura é aprendizado, de modo que falta a seu pai aprender essa lição. Felizmente, há a compreensão de seu marido e de sua filha que, inclusive, aceitam dividi-la com os livros...rs

      Um viva a eles! Apoio incondicional é importante na vida de um leitor.

      Beijos, queridaça!

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  5. Boa Tarde,

    gostaria de saber quais livros tem de Catullo

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