Uma Coluna para chamar de minha, com Vivi Lima

Ver e ouvir com os olhos e os ouvidos da boa consciência.

Quando comecei a escrever para essa coluna, creio ter mencionado o desejo de colocar em pauta assuntos outros além da leitura. Se não o fiz, esteja dito agora. Sendo assim, que tal falarmos sobre música? Vamos lá?
 
Recentemente, tem circulado a chamada da nova atração global denominada The Voice. Para quem não sabe, é mais um programa da linha Reality Show cujo objetivo é lançar mais uma estrela na sempre crescente constelação musical. Se o programa logrará sucesso, não sei. Não vou entrar no mérito da questão. Afinal, se é que cabe uma analogia musical, a atração está apenas em seu prelúdio. Aguardemos a execução da obra para opinar com justiça. Mas, uma vez apresentada a entrada, vale avançar com a temática.
 
A princípio, tal programa revela uma boa premissa. A pedra de toque é, ao apresentar a voz como a principal atração do espetáculo, conferir à aparência um lugar de menor destaque. Eu realmente acho a proposta bacana, pois vivemos numa cultura predominantemente visual em que a levada é basicamente a de sermos obrigados a ver muito e mal e, por tabela, a ouvir pouco e mal.
 
No entanto, com o surgimento do audiovisual, sabemos que a música não é mais por si mesma e requer uma sorte de parafernálias para dar-lhe mais brilho e cor. A exemplo, estão os figurinos, as cenografias, as coreografias, os clipes e etc. Nada de ruim nisso, não fosse a saturação de tanta informação visual que esvazia o processo de ouvir. Sei que, numa perspectiva sinestésica,  a música é mesmo para ser vista e ouvida. Mas isso é feito muito bem pela nossa alma e pela nossa mente. Mesmo não tendo olhos e ouvidos, a alma e a mente criam os mais belos cenários musicais. 
Com relação a isso, é engraçado, pois agora me dou conta de que muitas músicas pelas quais sou apaixonada não vêm com as imagens prontas e acabadas da indústria. Só tenho a música e a imagem que criei ao ouvi-la. Não sei a aparência do cantor(a), não sei como é o design da capa do CD, não fui aos shows de modo que, tendo em vista a forma como recebo a música, a aparência é mesmo o de menos. No espectro geral e atentando-se para o grande público, não sei a coisa funciona bem assim.
 
É melhor esclarecer que, nesse post, trato a aparência, no âmbito geral, como exterioridade enganosa. Ou seja, o que parece, mas não é. No entanto, como somos dados às generalizações, é preciso uma nota de distinção, pois, muitas das vezes, a aparência pode ser a verdade em si. Porque não?
Por isso, resguardadas as distinções, a título de esclarecimento, não estou tratando apenas da beleza física, mas do aspecto dos cantores evidenciado na forma como se oferecem. Mais uma vez: não digo que a aparência não tenha uma base real, todavia normalmente é parcial e muito diferente da essência. Pois vejam: quantos artistas que cantam gêneros e músicas de que não gostam e nos quais não acreditam só para fazer carreira na onda do momento? (Para quem não viu, o filme-musical Rock of ages aborda essa questão). Quantas versões demos são mais verdadeiras e melhores do que a versão produzida para parecer com as mais tocadas da vez? Quantos artistas têm um péssimo caráter, mas quando abrem a boca e começam a cantar, todo mundo se esquece disso e os aplaude? Quantos cantores mantêm o ser humano caminhando à sombra do artista? Quantos deles se imbuem da figura do personagem representado no palco e esquecem-se do que realmente são?
 
Não dá para ignorar que, no que tange a indústria da música, a apropriação do conceito mais raso e pejorativo de aparência tem sido, por vezes, um ruído bastante sonoro. Com os tempos modernos, a imagem passou de coadjuvante a protagonista, transformando a música em pretexto para colocar no mercado os modismos de consumo. E, quanto aos produtos ofertados, a lista é longa: roupas, cabelos, maquiagem, plástica, sexo, modos de pensar e agir, etc.
 
Diante disso, fico a imaginar se a proposição do The Voice é mesmo um contraponto à supervalorização da aparência que tem deixado de fora do cenário musical tantos talentos promissores. Será que o discurso não desafina um pouco da realidade? Esse lance de dizer que a voz importa mais que a aparência terá de ser muito mais que um discurso para convencer. Ora, estamos falando de um programa voltado para a criação de ídolos. Certamente, o dono(a) da voz passará por uma boa repaginação física e ideológica para se tornar vendável. Afinal, esse é o passaporte para entrar no disputado universo holográfico das estrelas. Diante disso, ficam as perguntas: como ignorar a presença física do cantor(a), o visual e o carisma na hora da escolha? Se for preciso virar as costas para poder escolher, não seria porque a aparência de fato importa e muito?
 
Pois está claro que os candidatos ao título de “A mais nova e melhor voz do Brasil” não querem apenas ser ouvidos. Querem holofotes para sua voz. E, convenhamos, nessa galáxia povoada de estrelas ilusórias, as imagem-sombras são mais “reais” do que a realidade. Porém considerando que a voz seja mesmo o mais importante para o programa, onde ficaria o conjunto da obra? O público aceitaria comprar a parte e não o pacote completo ao qual estão acostumados?
 
Tudo bem que o lance de virar as costas torna a dinâmica, no mínimo, divertida, além de diferenciar o programa de outros tantos com o formato parecido.  Mas... Fica-se somente nisso ou o foco é a mudança de paradigma? Bem, para não ficar somente na esfera do discurso, gostaria de ver as intenções do programa atuando na realidade concreta. Que a viradinha de costas seja uma metáfora para uma verdadeira mudança no modo de “ver a voz que canta”; e que seja uma forma de dar ouvidos ao que de fato estão ouvindo. Que a proposta do programa seja a de demonstrar para a audiência comum que quanto mais se aparece, mais invisível se fica; que a imagem se deteriora com tempo, embota-se na memória e, especialmente, com surgimento de uma nova onda, é logo esquecida; e que o registro de uma bela voz em sua essência, perdura como recordação.
 
Não estou trollando o programa, entendam. Estou apenas desdobrando uma série de questões que surgiram ao ver a mensagem de divulgação veiculada na TV. Na verdade, estou cansada da cegueira e da surdez disseminadas pela cultura padrão que transforma cantores em medíocres caricaturas e, o que pior, lima artistas talentosos em favor dos medíocres, contaminando o nosso ouvir.
 
Torço pelo sucesso do programa e dos candidatos, mas que saibam: sucesso legítimo para mim é distinguir a arte autêntica da mera manipulação cultural. Soa utópico, mas, vez ou outra, é possível encontrar gente séria fazendo música e televisão. A conferir.
 
E, para não dizer que não falei das flores, no mundo da leitura tem muito disso também. No que tange à aparência, há livros que são somente a capa. Há livros que têm mais persuasão fabricada do que conteúdo. Há obras que, mesmo sendo ruins, sobrevivem à custa do prestígio do autor. E o que dizer da escuta? Paramos para ouvir o que estamos lendo? Deixamos que a leitura corra ao sabor do fluxo do tempo de ouvir? À medida que acompanhamos a narrativa, ouvimos as conexões e os sentidos que ela estabelece com o mundo, com a gente e com outras leituras feitas?  A conferir.
 
Também a ver. A ouvir. A sentir. E a refletir.
 
Até mais, pessoal!


PS: A relação aparência versus essência funciona tanto para o bem quanto para o mal. Enfoquei os aspectos negativos, porém devemos pôr em dúvida as nossas sensações imediatas. A primeira impressão precisa ser posta à prova. E antes que eu me vá, segue uma breve (mas não menos importante) menção a muitos profissionais da música cuja imagem veiculada nos meios de comunicação não é lá muito das boas, porém quando conhecidos a fundo mostram-se doces, humildes e generosos. Outro exemplo? Então, vamos lá: livros à primeira vista! Sabem aquelas capinhas mais desenxabidas, aquelas sinopses pouco atrativas? Pois é, elas podem ser um péssimo cartão de visitas, mas podem também esconder grandes histórias. É isso, amigos, nossas crenças podem nos enganar. Mas, é aquela história: vivendo e aprendendo a jogar.


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7 comentários

  1. Eu nunca assisti o programa americano, não acho que esse tipo de reality shows musicais fazem sucesso por aqui... pelo menos não vejo nenhum ganhador fazendo sucesso, enquanto outros estouram nas paradas com musicas com letras repetitivas e de gosto duvidoso, até gosto da idéia de julgar a pessoa apenas pela voz numa sociedade cada vez mais preocupada com a aparência...
    Atire a primeira pedra quem nunca julgou um livro pela capa, né??


    beijos,

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  2. Li hoje pela manhã que o programa já tem alguns selecionados, são cantores que tentaram entrar em gravadoras e estão tipo que na "geladeira". Começando assim ta mais para BBB, escolhidos a dedo não vale.

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  3. Não sei Vivi, mas talvez a ideia seja produzir, em solo nacional, o fenômeno Susan Boyle, que não era a mulher mais bonita do mundo e ganhou um concurso e tornou-se famosa da noite para dia, apesar da aparência.
    Mas, não podemos esquecer que em seguida, a indústria fonográfica deu uma repaginada no visual de Susan, mas parece que o sucesso durou pouco tempo.
    Pode ser que eu esteja errada, mas penso que temos vozes maravilhosas que estão na prateleira e que poderiam voltar ao mercado, desde que as músicas chicletes não ocupassem tanto espaço na mídia.
    De minha parte, não gosto de Realities!
    Parabéns pela coluna!
    Bjks

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  4. Ih... acho que não vou gostar... achei que seria aberto totalmente para o povão... concordo que desse jeito tem mais cara de BBB...

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  5. Oi, Sueli! A Boyle é um bom exemplo de que as aparências enganam. Mas, acho que, nesse caso, o fenômeno foi alimentado mais pela comoção que sua história de vida gerou no público. Eu, particularmente, nunca a achei uma excelente cantora. Levando-se em conta que o gênero musical adotado por ela é abastecido por um mercado de nicho bem exigente, manter o sucesso é muito mais complicado. Ainda mais porque no Classical Crossover temos muita gente boa cantando melhor do que ela.

    Dias desses, ouvi o Leoni comentando sobre isso. Quantos Caetanos, Djavans temos escondidos no Brasil que não conseguem visibilidade porque as gravadoras decidiram que a onda do momento é Axé, Pagode e Sertanejo Universitário? É complicado...

    Beijocas!

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  6. Oi, Dé! Eu sou da opinião de que se for participar de um reality musical no Brasil, faça tudo para não ganhar. Geralmente quem ganha é quem mais sai perdendo. Além disso, diante da degeneração musical, fica mais difícil e entendiante acompanhar tais programas. Bjs!

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  7. Viu? Já está destoando do que foi vendido na propaganda. Mais um produto que aparenta ser o que não é. ..

    Eu estou parando de ler as sinopses, Leninha. Os spoilers jorram delas...bjs!

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