Todo dia a mesma noite – Daniela Arbex

Nunca é fácil falar sobre a dor. Menos ainda escrever sobre ela, principalmente quando é o que permanece anos depois de uma tragédia. Um acontecimento que vestiu o país de luto, devastou famílias, não poupou ninguém de olhar e se enxergar no outro – no que fica no outro quando as coisas são insuportáveis demais para encarar de frente.

O incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, estampou capas de jornais, virou manchete, teve a lente da tv ajustada para focar no que fica entre o sentimento de perda e de indignação – pela negligência dos responsáveis, pela cegueira imposta pelo ato e pelo fato. O fato que todo mundo conhece.

Mas um fato é um fato e, muitas vezes, é um rio fundo cujo mergulho exige mais preparo, mais tempo, mais sensibilidade para conseguir ver o que o imediatismo turva. Todo dia a mesma noite é esse ponto que nos permite tocar as histórias do antes, do durante e do depois de uma das maiores tragédias da história recente do Brasil.

A obra, como bem descreve Marcelo Canellas, é um inventário de afetos, cujas vidas vão sendo costuradas com palavras de quem tem experiência de relatar com a humanidade que o objetivismo do jornalismo diário, temporal, ligeiro, permite apenas de maneira limitada. A autora reconstrói a dor das milhares de pessoas que foram afetadas pela tragédia e entrega para nós um álbum de imagens vívidas, pulsantes, ainda inexploradas.

Contado em lapsos temporais que mesclam passado e presente, Daniela Arbex encaminha sua narrativa por estradas de empatia, de solidariedade, do que há de mais humano em nós quando o limite do sentir é a única coisa que nos faz mover. São pais, mães, socorristas, amigos, uma verdadeira rede cadenciosa que trabalha freneticamente para diminuir os impactos que só um acontecimento tão catastrófico é capaz de gerar.

O livro é um conjunto de retratos de jovens que partiram cedo, mas que deixaram legados que jamais serão esquecidos por quem os amou. As entrevistas que podemos supor dolorosas, extensas, absurdamente viscerais, dão material para que a autora nos coloque nas situações impostas – nas condições impostas. Ela transforma o número de vítimas em pessoas: ela dá vida, cor, voz e silêncio. Transforma o que o Brasil viu na matemática desastrosa que colocou um ponto final na vida de 242 pessoas em humano.

Tão necessário e importante que tenhamos a chance da leitura deste livro. Conhecer essas pessoas por trás do tragédia, caminhar por seus caminhos, sentir o gosto agridoce dos sonhos perdidos, dos objetivos começados, das pegadas que ficaram – das sementes que plantaram, dos afetos que deram e receberam. 

Daniela nos faz lembrar que o jornalismo pode ser agudo e atemporal, pode tocar o outro, se compadecer, gerar empatia, estar do lado das histórias que merecem ser contadas com honestidade e humanidade. Que não apenas podem, mas devem por obrigação. Novamente, ela reúne numa obra versões importantes que nos ajudam a não esquecer que há pessoas por trás do que o deadline ceifa.

Outros livros que confirmam tudo que estou dizendo (também da autora): Holocausto Brasileiro e Cova 312. Leiam e agradeçam por ter uma jornalista tão disposta a fazer com que nós, leitores, busquemos a humanidade que às vezes nos parece distante e meramente usual.

Reportagem definitiva sobre a tragédia que abateu a cidade de Santa Maria em 2013 relembra e homenageia os 242 mortos no incêndio da Boate Kiss.
Daniela Arbex reafirma seu lugar como uma das jornalistas mais relevantes do país, veterana em reportagens de fôlego - premiada por duas vezes com o prêmio Jabuti - ao reconstituir de maneira sensível e inédita os eventos da madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando a cidade de Santa Maria perdeu de uma só vez 242 vidas.
Foram necessárias centenas de horas dos depoimentos de sobreviventes, familiares das vítimas, equipes de resgate e profissionais da área da saúde - ouvidos pela primeira vez neste livro -, para sentir e entender a verdadeira dimensão de uma tragédia sobre a qual já se pensava saber quase tudo. A autora construiu um memorial contra o esquecimento dessa noite tenebrosa, que nos transporta até o momento em que as pessoas se amontoaram nos banheiros da Kiss em busca de ar, ao ginásio onde pais foram buscar seus filhos mortos, aos hospitais onde se tentava desesperadamente salvar as vidas que se esvaíam. Foi também em busca dos que continuam vivos, dos dias seguintes, das consequências de descuidos banalizados por empresários, políticos e cidadãos.
A leitura de "Todo dia a mesma noite" é uma dolorosa e necessária tomada de consciência, um despertar de empatia pelos jovens que tiveram seus futuros barbaramente arrancados. Enxergá-los vividamente no livro é um exercício que afasta qualquer apaziguamento que possamos sentir em relação ao crime, ainda impune.


3 comentários

  1. Já ouvi tanto o nome desta jornalista,depois do trabalho que ela criou com maestria em Holocausto Brasileiro. Aliás, o documentário é baseado nos textos dela né? Vi também a adorei muito, apesar de toda a dor.
    Mas como falar ou escrever de algo tão repleto de sentimentos sem citar ou sentir, dor?
    Impossível.
    Me recordo muito do dia que acordei com uma mensagem de um amigo que já partiu,dizendo: Angel, liga a tv, crianças morreram!
    Eu fui correndo e vi a tragédia ali, sem camuflagem, apenas a tragédia. Ele falou crianças pois tinha 4 filhos na mesma idade daqueles jovens!
    É a primeira resenha que leio deste livro e já vou colocar na lista de desejados.
    Não só para as pessoas que viveram aquilo ali na carne, mas este é um trabalho que merece e deve ser lido por todos nós, afinal, todos nós, vivemos aquela noite inúmeras vezes nas dores de tantos pais, amigos, familiares que perderam tantas crianças naquela noite que não terminou!
    Beijo

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  2. Ronaldo!
    Mesmo que seja um livro doloroso e até certo ponto cruel, acho importante sabermos todos os lados de uma história, ainda mais quando é verídica e envolve tantas pessoas, não apenas as envolvidas diretamento, mas amigos, familiares e toda uma cidade.
    Deve ser um livro impactante.
    “Não cruze os braços diante de uma dificuldade, pois o maior homem do mundo morreu de braços abertos!” (Desconhecido)
    BOA PÁSCOA!
    cheirinhos
    Rudy
    TOP COMENTARISTA MARÇO: 3 livros + vários kits, 5 ganhadores, participem!
    BLOG ALEGRIA DE VIVER E AMAR O QUE É BOM!

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  3. Oi Ronaldo!
    Lembro do dia do acontecimento, e como eu fiquei comovida com o que aconteceu e como devastou todo o país na época.
    Achei muito interessante porque é real, a tv nos mostra o que acontece na hora, toda a irresponsabilidade mas não nos mostra nem metade do que acontece.
    Imagino com seja ler o livro, sentir tudo que acontece, a onda de emoção que nos causa. E não pensar só em toda a tragédia mas no ser humano em si. Pensar naquelas vidas como não só 1 dos 242 mas como pessoas que tiveram seu tempo e que fizeram muitas coisas boas nos poucos tempos. Não li mas sinto que a autora nos mostra que jornalismo não é só aquela velha noticia tendenciosa por parte da mídia mas algo muito melhor. A autora realmente está de parabéns.
    Adorei a resenha, e com certeza a história do livro.
    Bjs

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