Uma coluna para chamar de minha, com Vivi Lima


Das leituras e literatices

Continuo acreditando ser o homem a maior invenção de todos os tempos.  Tenho  na máxima conta a Sabedoria que nos faz habitar em três tomos: corpo, alma e espírito. Uma pena e tanto que o sentido que damos para o homem o revele como máquina insensível e  plenamente satisfeito com o conhecer apenas em superfície. O pior é que adotamos passivamente para nós essa noção de ser. Ao longo da história da humanidade, em algum percurso desse caminho, fomos desistindo do ser EU. Deixamos colonizar nossos gostos e preferências de tal modo que nem sabemos mais como agir livremente. Hoje, como reverbera pulsante a composição clara do ser, pensar e fazer humano nos versos de Drummond.

“(..)Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
(…)Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Resumia uma estética.
Hoje, sou costurado,
Sou tecido,
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.

(Carlos Drummond de Andrade)

O homem se desumaniza por não saber-se em essência. De fato, recusamos a reconhecer nossa ignorância infinita. E tornamos inextinguível aquilo que, por excelência, é limitado e perecível: o conhecimento.  Não raro, pensamos ser essa uma época fértil em conhecimento, farta em saber, mas tudo se parece arremedos do conhecimento; como se o víssemos pelo espelho.  Ô época pretensiosa, essa! Livros e livros digitalizados no google books para pouca sede de saber e tempo mal gerido. Do que sobra, ou seja, no tempo em que cabe a minha vida, não dou conta nem dos poucos livros que acumulo na estante de casa. Mas, não falo aqui de uma corrida contra o tempo para ler, a toque de caixa, todos os livros que compro. Pois, de que adiantam as palavras em mente empoeirada; que ao lê-las acaba mesmo é por não fazê-lo pela simples incapacidade de compreender e interpretar o mundo?

Lê-se como se assiste TV.  A passada d’olhos é a tônica ao invés da leitura ativa. Leitura atenta, então, parece morar na utopia.  Ouvimos por alto, lemos por alto, entendemos por alto e fazemos por alto. E assim vamos vivendo. Fechados em nosso casulo, olhando para o nosso próprio umbigo e celebrando a estupidez humana. Ora, tal postura é tão pedante quanto qualquer forma de esnobismo intelectual. De uma parte ou de outra, ignorância totalitária me assusta. Assusta-me que, em nome de imposições culturais, deixemos o senso crítico no baú de nossas mente entulhadas de vazio. É imprescindível olho vivo para ler.

E aqui cabe refletir: você está presente quando lê?  É até estúpido considerar isso, afinal, quem não interrompe a leitura quando está com sono, por exemplo? Mas, falo da presença integral, física, emocional, espiritual. Pois então.  A meu ver, a presença é o senso na leitura. É o ato de aproximar-se do texto com todos os nossos cinco sentidos ativados, sem silenciar a razão. Só assim a leitura para mim faz sentido.

Abro um parêntesis para confessar: acho pobre essa cultura literária que nos coisifica, que padroniza as nossas predileções nos fazendo optar pelos livros do momento. Essa cultura que pouco celebra o humano, porém se repleta do conteúdo vazio dos mashups e coligações.  Socorro, salvem o DNA literário! Enfim, tudo me parece a cara do contágio dos tempos da cybercultura que fazem de softwares e hardwares a extensão de nosso corpo e pensamento; e que  também fazem jorrar literatices. O contrário do que é a palavra: a criação perfeita. Hoje deformada pelo excesso de etiquetas, rótulos e conceitos.

Agora está em voga o “sick-lit”. Leia-se literatura que tem a doença, a depressão, a morte e o suicídio como temáticas principais. Disseram que as narrativas do tipo estão no topo da preferência dos jovens. Sei. Como se histórias assim já não existissem desde o advento da impressa moderna. Como se a própria literatura não abarcasse toda e qualquer temática independentemente do gênero e do público. Mas a questão é outra: será que nossos gostos são mesmo fruto de escolhas propriamente nossas ou de uma maneira dominante de ver as coisas?  Sem querer criar grilos filosóficos na cabeça dos leitores dessa coluna, acho importante ponderarmos sobre os nossos gostos. Não há dúvidas de que estão ligados às influências e interferências do contexto cultural em que vivemos. Isso é ponto pacífico. Mas, é bom ponderar se não estamos pela vida a colecionar gostos alheios por imitação e inércia só porque estão “causando”.

É... sinal dos tempos. Somos a sociedade do conhecimento, mas padecemos da ausência de memória e da falta de visão. Não por acaso, o dicionário analógico da língua portuguesa, reporta à ignorância a ideia de livro fechado. Não nos lembra muito a feição do “conhecimento” que aí está ao nosso dispor?
 

4 comentários

  1. Vivi!

    AMO seus textos, sempre tão bem feitos e expondo verdades que nos fazem refletir...

    Com a nova era digital, apesar dos muitos avanços que contribuem para o desenvolvimento humano, acredito que o progresso tecnológico tão facilitador e ágil tornam as pessoas mais superficiais e menos integradoras. Tudo muito rápido, temos tanto informação que temos pressa e/ou preguiça em parar e ler em todos os sentidos um texto como você mesma cita acima.
    Acredito que não estamos preparados para esses avanços, nunca estaremos...

    Mas, não vou ficar aqui divagando não. Você já disse tudo amiga!

    Parabéns!
    bjssss

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    1. Oi, Lili! Que bom vê-la aqui. As pessoas se acomodaram a esse fazer de clique em clique. Estar online nem sempre significa estar presente. Infelizmente, tem predominado o comportar-se com os cegos, os ouvidos moucos e a mente bloqueada. Sendo realista, também não vislumbro grandes mudanças. Bjs!

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  2. Não sigo modismos, em nada, nem mesmo na literatura, leio sempre só aquilo que me chama a atenção e isto pode ser um livro bem antigo como um bem novo, não importa, nunca importou. Penso da mesmo forma com relação à Tv e cinema e tantas outras coisas....
    Infelizmente penso como você, o mundo está cada dia mais corrido e nem sempre é possível se ater com atenção em tudo o que nos rodeia, uma pena.
    Seu texto é perfeito, parabéns!

    Vanessa - Blog do Balaio

    http://balaiodelivros.blogspot.com/

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    1. Obrigada pelo comentário, Vanessa. Também ajo como você no que tange às leituras e aos demais tipos de entretenimento. Ultimamente, tenho me permitido desconectar de tudo que me deixa afobada, de todo o afã do dia a dia para apenas esvaziar a mente. Caso contrário, como se concentrar? Como estar presente em situações que nos insta a estarmos inteiras, de corpo e alma?

      Beijocas

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